Pássaro

Ana Straube
5 min readFeb 4, 2021

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Da primeira vez em que vi pássaro, ele não era mais do que um punhado de penas arrepiadas e um bico fino e comprido. Sua cabeça não era tão grande em proporção ao corpo, como num filhote de psitacídeo — popularmente conhecidos como papagaios ou araras — o que não é de se estranhar. Afinal, pássaro é um bem-te-vi.

Digo que sua cabeça não era tão grande porque ele conseguia sustentá-la bem. O problema de pássaro eram as pernas, arqueadas e frágeis, que lhe davam um ar graciosamente desajeitado, e o faziam vacilar.

Não sei qual é o seu grau de intimidade com pássaros. Eu tenho muita. Meu avô criava pássaros e estava sempre levantando uma gaiola, trocando o papelão do cocho ou colocando alpiste para um curió, um canário ou um pássaro preto. Ele tinha um jeito peculiar de levantar as gaiolas com uma mão só sem jamais deixá-las cair. Meu avô levantando gaiolas com uma mão só e as pendurando no alto das paredes azul claro de sua cozinha é uma das primeiras lembranças que tenho dele.

Meu pai também criava pássaros, apesar deste avô ser, na realidade, pai de minha mãe. Quando criança, meu pai morava numa casa com quintal onde criava pombos e marrecos. Ele e seus irmãos podem ser vistos em algumas fotos antigas, com suas bermudas e camisas engomadas, abraçados numa marreca com laço de fita no pescoço. Na família do meu pai não se admitiam cachorros, mas patos e marrecos, daqueles que comem e fazem coco em ritmo alucinante, eram bem-vindos.

Pergunto sobre a intimidade com pássaros porque só será possível ter uma ideia da expressão de pássaro se você tiver o mínimo de conhecimento sobre eles quando filhotes. Um bem-te-vi ou sabiá adulto parecerá ter as penas assentadas como se tivessem sido penteadas. Filhotes de pássaros nascem completamente pelados. Seus corpinhos são bolotas de látex bem fino, num tom de alaranjado, meio cor de rosa meio transparente, com as veias aparecendo.

Pássaro não era assim tão pequeno, mas sua plumagem falhada deixava entrever os fundos buracos laterais que são na realidade seus ouvidos. Suas penas finas estavam aprisionadas em longos canudos feitos de algo que se parece com uma membrana de unha humana, só que mais fina. As penas dos pássaros crescem dentro desses canudos, e eles se coçam tanto porque precisam quebrá-los com seus bicos em pedaços minúsculos para libertá-las.

Se você já teve a chance de observar de perto um pássaro, pode ter achado que aquele pozinho branco em cima das penas, que eles agitam de tempos em tempos, era caspa de pássaro. Mas com certeza era o que sobrou dos tais canudos. No quesito libertação de penas, pássaro ainda tinha muito trabalho pela frente.

Aceitei cuidar de pássaro a contragosto. A alternativa a trazê-lo para casa no suporte para copos do carrinho de bebê em que levo meu filho à escola era largá-lo em cima dum muro, bem em frente à árvore onde estava seu ninho, onde nem seus pais pássaros e nem a pessoa que o resgatou conseguiam colocá-lo de volta. A alternativa para pássaro era ser comido por um gato, na hipótese feliz de uma morte rápida, porém violenta.

Pássaro chegou e foi acondicionado confortavelmente numa caixa de acrílico forrada de pano, que até então tinha abrigado somente gelo e latas de cerveja. Balde de gelo é o nome correto do artefato. Ficava ali para poder ver o mundo pelas laterais transparentes e também porque ainda não voava. Nas noites mais frias, pássaro era envolvido num cobertor de cachorro e dormia no escritório.

Para alimentar pássaro, comprei uma mistura em pó para filhotes de aves. Comprei a genérica, dado que as outras opções eram destinadas aos filhotes de calopsitas e papagaios. Esse pó, com cheiro de banana e maçã, deve ser misturado à água. Mais água quanto menor o pássaro. Deve ser dado diretamente no bico do bicho, com uma seringa.

No início, pássaro não abria o bico sozinho, o que tornava suas refeições um tanto complicadas. Era preciso abrir seu bico com uma mão enquanto a outra rapidamente colocava a ponta seringa na goela. Graças à minha larga experiência com pássaros, sabia que precisaria deixar seu papo cheio para que ficasse saciado, o que praticamente não acontecia nunca.

Aos poucos, pássaro aprendeu a abrir o bico para comer. Em seguida, aprendeu a reivindicar. Com a fúria de um recém nascido faminto, passou a gritar de trinta em trinta minutos por comida. Um grito curto e estridente, ao mesmo tempo em que escancarava o bico e colocava sua língua fina, de ponta triangular, para fora.

Alimentar pássaro ao longo do dia se tornou uma das minhas principais atividades. Sua presença mexeu com o equilíbrio da casa, deixando criança, cachorro e papagaio, nesta ordem, profundamente incomodados. Um carinho mais bruto, algumas tentativas de bote e um pequeno incidente envolvendo todas as penas recém crescidas do rabo arrancadas a sangue frio foram o saldo da convivência forçada entre as espécies.

Pássaro aprendeu a voar. Apesar de maior, o aspecto suado de suas penas arrepiadas persiste. A coroa branca que nasce em sua fronte lhe dá um ar de mau humor permanente. Mais do que isso, pássaro tem cara de quem está irremediavelmente puto. Os buracos dos ouvidos ainda estão descobertos, então além de pássaro ele parece um extraterrestre de desenho animado.

Agora pássaro aprendeu a voar da minha mão para o ombro. Anda pelas minhas costas e se embrenha nos meus cabelos. Pássaro gosta de entrar debaixo do meu pescoço e ali se aninha, fecha os olhos com pálpebras tão fininhas que ainda dá para ver a parte de dentro. Pássaro não chama mais só quando está com fome, mas a todo momento, para pedir atenção. Como voa alto, ganhou um viveiro para não se afogar na privada ou se enroscar no fio da geladeira.

Além de papinha, pássaro come amoras. Elas estão na época, então as cato pelas ruas e também na escola. Peço amoras ao vigia da escola que resgatou pássaro, afinal ele é co-responsável por ele. Compro amoras orgânicas na feira do parque, mas não porque acho que ele não possa comer frutas com agrotóxicos, mas é porque somente essas cabem em seu pequeno bico. Apesar de pequeno, pássaro é capaz de empilhar três amoras tão longas quanto um dedo de criança dentro de si. Seu bico quase não se fecha, e o papo de pele transparente se torna preto. Agora sei como uma cobra consegue engolir um jacaré.

Pássaro sabe voar e comer. Pássaro será solto na natureza do meu prédio. Com sorte, virá bicar nossa janela e fará amizade com a turma do sabiá albino que apelidamos de Ciscando quando o vimos arrancar uma minhoca da terra. Com azar, acabará sua vida batendo de frente com o muro do prédio da frente, que começa a ser construído.

O problema é que pássaro se acostumou comigo. Ficou domesticado demais. Gosta de assistir a desenhos pela manhã e à tarde conversa com Frida, a papagaia. Agora falam a mesma língua, fruto da fisiologia do bico do papagaio e de sua língua redonda — como a humana — que o permite reproduzir sons com fidelidade. Agora, ambos falam bem-te-vi.

Eu não queria, mas pássaro fica.

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