João Victor Vs. Gustavito

Ana Straube
3 min readMar 6, 2017

Quis a vida, essa moça que aprecia a ironia, que João Victor e Gustavito se tornassem notícia na mesma semana.

De João Victor sabemos que tinha 13 anos, morava com o pai, tinha uma irmã mais velha grávida de 8 meses, e costumava frequentar os arredores de uma lanchonete Habib’s no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, para pedir dinheiro e comida.

De Gustavito sabemos que tinha 15 anos, era o único hipopótamo do zoológico municipal de San Salvador, capital de El Salvador, vivia em um recinto apertado e saia diariamente de seu tanque para comer.

Se da vida de João Victor pouco se conhece, de sua morte sabemos menos ainda. Testemunhas afirmam que no dia 26 de fevereiro ele foi agredido violentamente na cabeça por funcionários do supracitado restaurante, caindo morto logo em seguida. Já os funcionários têm outra versão, e dizem que apenas expulsaram o menino que importunava a clientela, e que ele, ao sair correndo, teria sofrido uma parada cardíaca. Chamaram o SAMU, que apenas confirmou sua morte antes da chegada ao hospital.

A existência de Gustavito parece ter sido melhor documentada. Foi levado a El Salvador após a morte de outro hipopótamo do mesmo zoo. Seu nome foi escolhido por votação popular e cerca de 25 mil pessoas foram saudar in loco sua chegada. Seu assassinato, por consequência, causou grande comoção. Atacado na madrugada de 22 de fevereiro por desconhecidos com objetos perfurocortantes (alguns textos citavam em facas, outros picadores de gelo) e barras de ferro, Gustavito passou dias sem sair da água para comer. O comportamento incomum alarmou os veterinários, que ao tirarem o mamífero da água descobriram os cortes e hematomas. Passou dias em tratamento, não resistiu e morreu no mesmo dia 26.

O recurso da humanização de animais é antigo e recorrentemente utilizado na literatura, no cinema, na TV. Não é de estranhar, portanto, que a agonia de Gustavito, vítima de crueldade sem explicação, tenha gerado tamanha indignação. Enquanto autoridades salvadorenhas lamentavam a morte de um animal indefeso, que não fazia mal a ninguém, e culpavam a violência generalizada que contamina a sociedade, leitores brasileiros pediam punições exemplares aos culpados. “Que tenham seus membros decepados”*, bradou alguém, via caixa de comentários, essa entidade com a qual somos forçados a lidar.

O recurso da desumanização do ser humano também não é novidade. A narrativa sobre o assassinato de João Victor é estranhamente factual. A agressão convertida em confusão. O sonolento “a assessoria da rede não quis comentar”. A manjada investigação conduzida (e nunca concluída). A vaga declaração do pai de que o garoto “estava em tratamento por um problema com lança-perfume, apesar de não saber informar a quanto tempo”.

Ainda assim, a morte de João Victor mereceu indignação. Contra ele, claro. Afinal, “se estivesse em casa não tinha morrido”*. Além de que, com certeza, “não era nenhum anjo”. E contra seu pai, “que largou na rua e agora aparece chorando”, e “que sem dúvida agora vai atrás de uma indenização, orientado por algum advogado de porta de cadeia”. Sobrou até para o pessoal dos “direitos dos manos”, que logo mais “vai aparecer dizendo que a culpa é da violência da sociedade”.

É intrigante que nenhum argumento utilizado para ressaltar o horror da história de Gustavito sirva para João Victor que, aos 13 anos, talvez fosse um pouco mais indefeso que um hipopótamo. Se do alto de suas 1,5 toneladas, Gustavito não poderia fazer mal a ninguém, muito menos ameaçador era João Victor, que tinha como grande elemento desabonador de sua conduta o incômodo que causava a quem queria comer uma esfiha em paz.

Seu caso não despertou a comoção de autoridades, a violência da sociedade não foi citada em declarações. Um comentário lembrou o direito do segurança de afastar pessoas inconvenientes da porta de estabelecimentos comerciais. Ninguém lamentou sua morte.

*As notícias que basearam este texto, bem como os comentários, podem ser lidos aqui e aqui.

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