Dôra

Ana Straube
6 min readMar 25, 2021

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“foi um tempo sem sorrisos.
um tempo de esgares,
de gritos sufocados,
um grito no escuro.
a apologia da violência.
a luta pelo poder absoluto.
a destruição do outro,
da antítese da sua alma negra”
Maria Auxiliadora Lara Barcelos

Se estivesse viva, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dôra, faria hoje 76 anos.

Num país sem memória e com pouco conhecimento de sua história como o Brasil, apresentações se fazem necessárias.

Dôra nasceu em Minas Gerais, estudou medicina, integrou uma organização de resistência armada à ditadura militar, entrou na clandestinidade, foi presa, torturada, trocada junto a outros(as) 69 presos(as) políticos(as) pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, foi banida, viveu um período no Chile e, após o golpe que derrubou o governo Allende, vagou pelo México, Bélgica e França até se fixar na Alemanha. Tentou retomar seus estudos, tentou ser reconhecida como exilada política, tentou obter documentos. Suicidou-se em 1976, aos 31 anos, se jogando na frente de um vagão do metrô na cidade de Berlim.

Sua trajetória — assim como a de outros homens e mulheres que tiveram a coragem de se levantar contra um regime autoritário — já seria admirável e digna de ser conhecida, lembrada e honrada. Mas o caso específico de Dôra é muito emblemático, pois ela falou.

Dôra falou sobre a tortura, sobre o assassinato do companheiro que foi preso com ela nos porões, e falou ampla e claramente sobre o que acontecia com as mulheres nos cárceres da ditadura.

Aqui cabe um aparte. Uma mulher presa pelas forças repressivas do Estado tinha na tortura sexual, no estupro e na violação íntima de seu corpo praticamente uma certeza. Afinal, diante dos algozes, mulheres engajadas na “subversão” não estavam cometendo apenas o crime de se organizar para tentar derrubar um governo ilegítimo, instituído por meio de um golpe militar, mas também o crime de o fazer sendo mulheres. Estavam ocupando duplamente um lugar que não era delas, e deviam ter seus corpos penalizados e violentados por esse duplo “equívoco”. A tomada do corpo da mulher capturada por seus oponentes como “troféu de guerra” estava longe de ser uma novidade em 21 de novembro de 1969, data da prisão de Dôra.

Voltando à Dôra e seus registros, é notável que ela tenha conseguido deixar, num curto período de tempo, um testemunho tão exemplar — ao mesmo tempo pessoal e político — sobre as variadas adversidades que encarou como militante: a clandestinidade, a prisão, a tortura, o exílio. É de Dôra um dos depoimentos mais contundentes sobre as violações aos Direitos Humanos na ditadura gravado pelo documentário: “Brazil, a report on torture”, produzido por uma equipe de cineastas norte-americanos com os recém chegados exilados brasileiros ao Chile.

Mas não foram só entrevistas. Dôra, uma mulher de pensamento sofisticado e talento de escritora, deixou um legado imenso de cartas e textos (inclusive um conto, “Buti”) em que expõe as dimensões mais íntimas de sua experiência. Nas correspondências trocadas com sua mãe e irmã ao longo de anos, ela narra com fluência fatos e acontecimentos, mas também escancara sua solidão, a vontade de voltar para casa, as saudades da família, o amor por seus companheiros, os desafios impostos por sua condição psíquica e o interesse por áreas de pesquisa muito originais.

Em seus escritos, Dôra se mostra pioneira ao investigar a condição da mulher, do corpo feminino, de seus desejos, antecipando em décadas discussões que o feminismo tem pautado recentemente , como a interseccionalidade dos sistemas de opressão de raça, gênero e classe. Colocou sua curiosidade a serviço do estudo da psiquiatria ginecológica, e pretendia seguir trabalhando no tema se sua trajetória não tivesse sido interrompida por fantasmas muito difíceis de exorcizar.

Vez ou outra surgem interditos sobre a insistência em levantar questões relacionadas à ditadura por parte de vítimas, pesquisadores, jornalistas, escritores, familiares e amigos de mortos e desaparecidos. Afinal, a eleição de ex-perseguidos políticos como Lula e, sobretudo, Dilma Rousseff* seria a última fronteira transposta para comprovar que a democracia brasileira estava enfim consolidada.

Mas, como a história tem nos mostrado de forma contundente, é impossível consolidar qualquer democracia com uma transição pactuada como a feita no Brasil a partir de 1979, com uma Lei de Anistia que livrou responsáveis por crimes contra a humanidade — e imprescritíveis — de terem suas condutas questionadas, investigadas e eventualmente punidas. De um lado, o Estado se eximiu da responsabilidade por ações cometidas em seu nome e a seu mando, e do outro “perdoou” oponentes que já haviam “pago” por seus atos, seja por meio de julgamentos (arbitrários, pois submetidos à lógica de um regime autoritário) e prisões, seja com suas inaceitáveis mortes e desaparecimentos. Em suma, temos uma lei que é uma impossibilidade em si, já que “auto anistia” o Estado ao mesmo tempo em que “perdoa” os já condenados.

Crimes como tortura, assassinato, sequestro e desaparecimento receberam carta branca para continuar sendo cometidos pelo Estado contra os indesejáveis da vez, cujos corpos guardam entre si semelhanças de origem, classe e cor. Na esteira de uma redemocratização que manteve as mesmíssimas forças e figuras ativas no espectro político, e pisa cotidianamente no direito à memória e a verdade ao não abrir a totalidade de arquivos, não esclarecer crimes e não devolver corpos desaparecidos, temos resultados como a eleição à presidência da República de um deputado que faz elogios cotidianos a um dos mais abjetos torturadores e ao regime que o produziu .

Se antes já era tempo de falar de Dôra, hoje mais do que nunca, é necessário e urgente resgatar sua história, seus escritos, e a atualidade de sua produção. Em “Continuo Sonhando”**, uma carta-aberta manifesto cheia de metáforas e poesia, ela retoma uma constatação antiga, porém assustadoramente pertinente ao momento corrente:

“infeliz o país que precisa de mitos.”

Dôra vive!

O texto “Continuo Sonhando” e algumas das cartas escritas por Dôra podem ser achadas na internet.

É possível encontrá-la na peça Dora, criada, encenada e dirigida por Sara Antunes, em cartaz online até o dia 4 de abril (ingressos via sympla aqui). A história de Sara e Dora começou em 2018, quando a atriz a interpretou no filme “Alma Clandestina”, dirigido por José Barahona. Sara mantém um perfil no Instagram e no Facebook onde posta um pouco de seu diário de criação, além de conversas muito interessantes com pessoas que, de diferentes maneiras, têm relação com Dôra.

Além de “Alma Clandestina”, há outros documentários e gravações que trazem a história de Dôra sob vários ângulos, como “Retratos de Identificação”, dirigido por Anita Leandro, que a partir de uma pesquisa documental reconstrói a história de sua prisão, e uma longa entrevista com sua mãe, Clélia Lara Barcelos, realizada em 2007 pela TV Assembleia de Minas Gerais. Os links para acessar essas e outras obras relacionadas seguem abaixo.

Brazil: a report on torture, 1971
https://www.youtube.com/watch?v=YlQKL707vro
Dir. Saul Landau e Haskell Wexler

Não é hora de chorar, 1971
https://www.youtube.com/watch?v=5sWYDtBtLCk
Dir. Luiz Alberto Sanz

Dora, ou quando chegar o momento, 1976
https://www.youtube.com/watch?v=Q2xEzsk-O2I&t=188s
Dir. Luiz Alberto Sanz

Setenta, 2013
https://www.youtube.com/watch?v=8lJ-_IaI2z4
Dir. Emília Silveira

Retratos de Identificação, 2014
https://www.youtube.com/watch?v=7tmN6VMaP8o
Dir. Anita Leandro

Alma Clandestina, 2018
https://www.youtube.com/watch?v=1G5Ir_rGhQI
Dir. José Barahona
Com Sara Antunes

Entrevista com Clélia Lara Barcelos (mãe Dora), 2007
Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=h2J7bkR66yo
Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=avpJNXdVA4c
Produzido pela TV Assembleia de Minas Gerais

*Dilma Rousseff foi companheira de organização de Dôra. Sobre ela declarou, em 2010, ao confirmar sua candidatura à Presidência da República, num congresso do PT:

“Quero recordar três companheiros que se foram na flor da idade. Carlos Alberto Soares de Freitas. Beto, você ia adorar estar aqui conosco. Maria Auxiliadora Lara Barcelos. Dodora, você está aqui no meu coração. Mas também aqui com cada um de nós. Iara Iavelberg. Iara, que falta fazem guerreiras como você. O exemplo deles me dá força para assumir esse imenso compromisso.”

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