Dez livros sobre a ditadura militar no Brasil

Ana Straube
9 min readApr 1, 2021

--

Peço licença aos que insistem em contradizer a história. Aliás, não peço licença alguma: a ditadura militar existiu, esta é uma realidade, e ainda não foi inventado método melhor para combater negacionismo e ignorância do que ler e se informar.

Há tempos esse tema me interessa, e tive a sorte de ter tido acesso desde cedo a livros sobre o assunto que, por motivos vários, está cada vez mais em pauta.

Particularmente, acredito que qualquer pessoa que tenha refletido sobre o processo de Anistia e redemocratização brasileiros não ache que ler sobre a ditadura é “útil” apenas para conhecer uma parte de nosso passado.

Afinal, poucas estruturas do período foram realmente desmontadas, a polícia continua torturando e prendendo arbitrariamente, o país segue campeão de violações aos direitos humanos, até hoje não se sabe o destino dos corpos de militantes políticos mortos e desaparecidos, arquivos não foram abertos, e boa parte dos atores políticos atuantes naquele período continuam por aí. Isso para não citar os acontecimentos mais recentes, culminando com a eleição para Presidente de uma figura autoritária que comemora o golpe e seus desmandos, elogia abertamente seus carrascos e não para de tentar implantar a sua própria ditadura.

A partir dessa perspectiva, faço aqui uma lista com pequenas resenhas de dez dos meus títulos preferidos (não necessariamente em ordem). Como qualquer lista, ela representa um recorte e está longe de esgotar a bibliografia existente. Misturei gêneros, já o tema comporta diferentes linguagens e narrativas, como testemunhos, livros-reportagem, ficção (uma lista dedicada à ficção que remete à ditadura não seria má ideia), ensaios, biografias etc.

Por fim, é sempre bom lançar mão do atualíssimo clichê de que um povo que não conhece sua história está fadado a repetí-la.

1. Combate nas trevas, de Jacob Gorender

Este livro é um clássico sobre a ditadura, dedicado à história das diversas organizações clandestinas criadas para lutar contra o regime e tentar derrubá-lo. Jacob Gorender foi um historiador, militante comunista, e fez parte do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR, um racha do Partido Comunista Brasileiro, PCB, que optou pela luta armada. Gorender fez diversas atualizações ao longo dos anos, e o título teve mais de 30 edições. Para dar uma ideia de sua relevância, um ex-militante apontado como delator – informação posteriormente corrigida – se baseia na chancela de Gorender quando se defende de acusações de colaboração com o regime. Além de escrever muito bem e conhecer a estrutura das organizações como somente quem participou ativamente delas conheceria, Gorender não faz concessões e não tem medo de tomar posições incômodas para parte da esquerda. Ele critica abertamente, por exemplo, figuras como Luís Carlos Prestes.

Publicado em 1987, sua edição mais recente é da Expressão Popular.

2. Os carbonários, de Alfredo Sirkis

Sirkis tem uma história sui generis entre os que pegaram em armas contra a ditadura. Estimava-se que ao entrar na clandestinidade e realizar ações, a expectativa de vida de um guerrilheiro era de, no máximo, doze meses. Sirkis teve a sorte de não ser preso, apesar de ter participado ativamente, como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de duas ações de grande porte: os sequestros dos embaixadores alemão e suíço, que juntos libertaram 110 presos políticos. “Os carbonários” conta a história de militância do autor de 1967, quando ele ingressa no movimento secundarista, à 1971. Para mim, o grande trunfo é a narrativa do ponto de vista de alguém que realmente esteve ali. É daqueles livros que não dá para parar de ler, dada a adrenalina. Após os sequestros, Sirkis conseguiu exilar-se. Quando voltou ao Brasil trabalhou como jornalista, foi vereador e deputado federal pelo Rio de Janeiro, defendendo as causas ambientais. Morreu recentemente, em 2020, num acidente de carro.

Publicado em 1980. Minha edição é da Record. Existe uma versão de bolso mais recente, da Best Seller.

3. Marighella — o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães.

Esse não é só um dos meus títulos preferidos sobre a ditadura, mas um dos livros que mais amo na vida. Para começo de conversa, aprendi mais sobre história do Brasil com ele do que na escola. Em segundo lugar, é uma das biografias mais bem apuradas e escritas que já li (gosto bastante do gênero). E terceiro, mas não menos importante, a figura de Carlos Marighella é completamente apaixonante. Concordando ou não com as causas que abraçou — com muita convicção — na vida, há de se admitir que se não vivêssemos numa sociedade tão binária, Marighella (que em 58 anos foi militante comunista, deputado federal constituinte, preso pelo Estado Novo, fundador da Aliança Libertadora Nacional e poeta) seria uma personalidade histórica e política muito mais conhecida e estudada, dada a sua relevância.

Publicado em 2012, é da Cia das Letras.

4. Retrato Calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes

Professor de filosofia na USP, o autor foi preso pela ditadura militar em diversos momentos, acusado de colaborar com a resistência. O livro traz um relato muito pessoal da brutalidade, arbitrariedade e até mesmo do surrealismo que marcam suas detenções, dado que ele estava longe de ser um guerrilheiro. Gosto muito desse livro pelo apuro da linguagem, da asfixia que ele transmite, dos silêncios. Retrato Calado tem também o mérito de demonstrar que um regime autoritário considera inimigo toda e qualquer pessoa que se posiciona — ainda que intelectualmente — contrário a seu ideário. Ou seja, serve como um alerta sobre a lógica de funcionamento das máquinas de repressão.

Minha edição é da Cosac Naify, mas felizmente ele foi reeditado pela Unesp e está em catálogo.

5. Em câmara lenta, de Renato Tapajós

Renato Tapajós foi membro da Ala Vermelha, uma organização de combate à ditadura militar. Permaneceu na prisão de 1969 a 1974 e, em 1977, publicou este que foi o primeiro livro a trazer denúncias sobre torturas e demais violações praticadas contra presos políticos nos porões do regime. Sua publicação provocou uma nova prisão do autor, que passou dez dias incomunicável. O livro foi então censurado e teve sua venda suspensa (e retomada em 1979). Apesar de romanceado, é possível identificar algumas situações e personagens reais retratadas, entre elas a morte brutal da guerrilheira Aurora Maria Nascimento Furtado. Por fim, a obra tem o mérito de fazer um balanço da guerrilha de uma perspectiva de quem participou ativamente dela.

Publicado em 1979, pela editora Alfa-ômega.

6. Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho.

Tenho com esse livro uma relação afetiva. Foi o primeiro que li integralmente sobre a ditadura, ainda na adolescência, dado de presente por meu pai. É um livro-reportagem que conta a história de mulheres que, como o título bem coloca — participaram de alguma maneira da guerrilha. Para isso, traz depoimentos das que estavam vivas na época de sua publicação, e também perfis e entrevistas de amigos e familiares daquelas que foram assassinadas pelo Estado. Além dos testemunhos, o livro tem como pano de fundo um mistério, uma história pouco conhecida de uma mulher que foi morta acidentalmente por uma guerrilheira dentro de um aparelho (nome dado às casas e apartamentos utilizados como residência e atividades políticas pela resistência). Reli esse livro recentemente e confesso que algumas expressões e referências machistas me incomodaram um pouco, algo que me passou batido em 1998. Ao longo dos anos, tive acesso a outros livros que abordavam a participação das mulheres na luta armada de uma perspectiva feminista, jogando luz, por exemplo, à tortura sexual da qual praticamente todas elas foram vítimas. Ainda assim, o texto do Maklouf é muito bom e torna o livro difícil de largar. Anedota pessoal: em 2007, tive a oportunidade de estar com ele num evento e me retorci de vontade de pedir que me revelasse a identidade da autora do disparo acidental, mas não tive coragem. Como ele faleceu no ano passado, vou carregar para sempre esse arrependimento.

Publicado em 1998, pela Editora Globo, está fora de catálogo mas tem à venda na Estante Virtual.

7. Lugar nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura, de Lucas Figueiredo

Esse livro-reportagem inaugura a ótima coleção Arquivos da Repressão no Brasil, coordenada por Heloisa M. Starling e publicada pela Companhia das Letras. Nele, Lucas Figueiredo faz descobertas e revelações importantes sobre a ocultação de documentos da ditadura por parte das Forças Armadas. Sabe aquele papo de que foi tudo destruído? Balela. Com a descoberta de muitos documentos microfilmados Lucas esclarece datas e fatos relativos à morte e desaparição de perseguidos políticos. Vou aproveitar esse textinho para falar de outro livro ótimo do mesmo autor, chamado Olho por olho (2011, Record). Acredito que os dois se completam. Olho por olho conta a história da construção heróica do Brasil, nunca mais, livro denúncia organizado por Dom Paulo Evaristo Arns com nomes e informações até então inéditas sobre agentes do regime, técnicas de tortura etc. Fala também do livro-resposta do Exército ao Brasil, nunca mais, o Orvil, que na ânsia de desmentir algumas versões da esquerda, acaba por contar a verdade sobre a morte de alguns militantes, desmentindo as próprias versões oficiais.

Publicado em 2015, pela Companhia das Letras. Vale a pena dar uma olhada na coleção, que até agora tem mais quatro volumes: Os fuzis e as flechas (sobre as violações cometidas contra povos indígenas), Tanques e togas (autoexplicativo, sobre a relação entre o Poder Judiciário e os militares), Herói mutilado, sobre a censura à novela Roque Santeiro e à TV, O Brasil contra a democracia (traz detalhes sobre a participação da ditadura brasileira no golpe que depôs Salvador Allende e instituiu o governo de Pinochet, no Chile).

8. 1964: a conquista do Estado, de René Armand Dreifuss

Clássico dos clássicos, conta direitinho (até porque tem 816 páginas) a articulação entre os vários setores da sociedade brasileira envolvidos no golpe militar. Detalha a criação de organizações que fomentaram o ideário golpista como o Ipes e o Ibad, as ligações entre os grupos econômicos cujos interesses estavam intimamente relacionados à quebra da institucionalidade, e traz informações muito interessantes sobre a campanha ideológica que homogeneizou a ideia de que o Brasil estava à mercê de um golpe comunista. Os apêndices são um show à parte, repleto de atas de reuniões, trocas de correspondências, listas de nomes de apoiadores etc.

Publicado em 1981, pela editora Vozes. Não achei no site da editora, mas vi à venda na Amazon e Estante Virtual.

9. Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares

Tive o prazer de entrevistar o jornalista e autor desse livro, e ganhar dele um exemplar do livro. A jornada de Flávio Tavares foi intensa. Jornalista e militante, ele foi preso, trocado pelo embaixador Charles Burke Elbrick em 1969, foi para o México, e depois para a Argentina. Foi preso novamente pela ditadura uruguaia e só não foi morto por conta de uma campanha internacional levada a cabo por organizações de Direitos Humanos. Gosto desse livro principalmente pelo tom. Flávio sofreu muitas torturas, e deixa claro o quanto dar o testemunho desse trauma é, ao mesmo tempo, quase impossível e necessário, sem heroísmos.

Publicado em 1999. Minha edição é da Globo, mas foi reeditado pela LP&M.

10. Autópsia do medo, de Percival de Souza

Medo. Eu li esse livro bem jovem, outro que ganhei de presente do meu pai. Li literalmente morrendo de medo, perdendo o sono e com a sensação que o capeta do delegado Sérgio Paranhos Fleury ia entrar no meu quarto a qualquer momento. Afinal, trata-se de sua biografia, escrita pelo jornalista policial Percival de Souza. Muito bem apurado, foi um dos primeiros de uma leva de livros sobre a ditadura publicados no início dos anos 2000. Li sem largar, voltei trechos, tem muita informação relevante ali. Gostaria de reler para ver se passa no crivo do tempo. Uns anos antes, vale destacar que o Percival publicou um livro-entrevista com outra figura demoníaca, o Cabo Anselmo. Parabéns e obrigada por ter tanto estômago de ir atrás dessas histórias e contar pra gente, Percival!

Publicado em 2000, pela Globo Livros. Não achei no site da editora, mas bomba na Amazon e Estante Virtual.

***Menção honrosa*** para a coleção A Ditadura, do Élio Gaspari. Alguns historiadores torcem o nariz, principalmente por Gaspari ter tido acesso ao arquivo privado do General Golbery do Couto e Silva. Não sou historiadora, mas como leitora ávida do tema vejo muitas qualidades: pesquisa rigorosa, texto agradável (Élio Gaspari, né?), revelações importantes e a coragem de sistematizar um período longo e turbulento numa coleção acessível ao público não acadêmico. Foi no Ditadura Escancarada que eu li pela primeira vez detalhes sobre a Guerrilha do Araguaia (há livros específicos que saíram depois). Enfim, um bom panorama para entrar no tema. A minha edição é a da Cia das Letras, de 2002, mas fiquei com vontade de comprar a reedição da Intrínseca em ebook.

***Uma pausa para os comerciais*** Contribuí escrevendo dois perfis para o livro Os advogados e a ditadura de 1964 — a defesa dos presos políticos. Entrevistei o Dr. Mario Simas (advogado de presos políticos e autor de um livro sobre o período da ditadura, Gritos de Justiça) e também o ex-procurador Hélio Bicudo que, cá entre nós, muito nos decepcionou nos últimos anos. O livro saiu pela editora Vozes em parceria com a editora da PUC-RJ, em 2010, e é facilmente encontrado nos e-commerces da vida. O mais legal é que ele inspirou um documentário do muso Silvio Tendler. O filme pode ser visto aqui.

--

--